No comecinho da década de 1940, quando a casa nº 240 da Praça da Matriz foi comprada pelo meu avô, Alcindo de Oliveira Santos, ela tinha mais ou menos 50 anos. A bandeira da porta da frente indica a data de 1893, o que não quer dizer que a casa tenha sido construída naquele ano; era comum que uma grande reforma inserisse uma data na frente das casas, uma data que não marcava o nascimento, mas uma nova fase daquela morada.
Com meus avós morando ali, frequentei a casa entre as décadas de 1960 e 1990. O que escrevo é em parte o que estudei sobre como funcionavam as casas do século XIX paulista e em parte o que testemunhei na casa centenária. Ao longo da vida, tive a alegria de estudar o que iluminava minhas experiências em Socorro. Pretendo mostrar aqui que, por trás da fachada de uma casa antiga há vestígios valiosos de pessoas bem diferentes, de períodos distintos e de jeitos variados de trabalhar e de morar. Numa mesma casa, algumas práticas permanecem e outras novas vão surgindo.
Pensando na história de Socorro, é bem provável que a casa tenha sido construída nas últimas décadas do século XIX, pois no começo do núcleo urbano, na década de 1820, a concentração de casas era maior na Rua do Commercio, onde hoje é a Rua Campos Salles. Era ali que ficava a maior quantidade de casas robustas, perto do rio, onde se podia ter acesso fácil a água. Em parte delas, a frente era ocupada por estabelecimentos comerciais e a família morava na parte que começava depois da loja. Com o crescimento trazido pela cafeicultura, algumas décadas depois, o Largo da Matriz foi cada vez mais ocupado.
Então, a casa do Largo da Matriz (hoje Praça Coronel Olympio) foi construída no século XIX e, pelo que sei, ali se usaram aqueles tijolões grandes de barro, areia, capim e estrume, chamados de adobe; por isso as paredes da frente são tão grossas. Essas paredes externas são grossas também porque são estruturais, ou seja, sustentam a edificação. O assoalho e o forro do telhado são de tábuas de madeira; entre um e outro, quase 5 metros de pé direito. As janelas e portas também são bem altas e todas de madeira. Naquele tempo era comum aproveitarem o declive do terreno para fazer o porão, o que a gente nota na fachada das casas antigas, rente às calçadas, nas pequenas entradas fechadas por grades de ferro quadradas ou redondas, com cerca de 30 cm de diâmetro. Conforme o terreno avança pro fundo, o porão vai ficando mais alto e até outros recintos podem se formar embaixo do pavimento térreo.
Até a década de 1980, a porta da frente da casa dos meus avós vivia aberta. Mas vigorava um código tácito, porque havia quem entrava sem bater, havia quem dava um toque na campainha pra anunciar que estava chegando gente de fora e havia muita gente que, apesar da porta aberta, tocava a campainha e esperava ser atendido. Meu avô fazia escrituração pras pessoas da Zona Rural (uma das salas da frente era ocupada por seu escritório) e, por isso, a campainha tocava várias vezes por dia; com a casa comprida, tentávamos escapar da tarefa de “atender a porta”. Não bastava ver de quem se tratava, era preciso assuntar o que a pessoa queria e voltar com o recado direitinho até onde estava meu avô (no mais das vezes cuidando das plantas do quintal). Não era raro que um serviço burocrático do meu avô fosse pago ou simplesmente agradecido com um frango, uma abóbora, um quarto de leitoa; presentes que o pessoal do sítio lhe dava.
Muitas casas urbanas do século XIX (e até algumas na zona rural) eram assim: a fachada rente à calçada, sem jardim na frente; nessa fachada, grandes janelas dos dois lados. Entrando pela porta, uns degraus davam início a um corredor bem comprido. Em cada lado, uma grande sala com os janelões dando pra rua. Passadas as salas da frente, esse corredor central era ladeado por alcovas (recintos menores e sem janelas) e ia dar numa sala no fundo da casa, com janelas na face posterior.
Na sala do fundo acabava a construção da morada típica desses tempos em que não havia água encanada e tampouco fogão a gás. Na inexistência de banheiro, o mais comum era o uso de penicos; mas também havia aqueles cubículos sobre buracos no solo: as “fossas” ou “casinhas”. Sem rede de esgoto, os dejetos eram armazenados e depois jogados no curso de água mais próximo.
A cozinha podia ser construída junto à casa ou separada; em muitas casas havia duas cozinhas, a de dentro e a de fora. A cozinha apartada dos demais recintos era pra manter a casa livre da fumaça do fogão e da sujeira causada pelo entra e sai de lenha, pelo beneficiamento dos alimentos. Antes de ser cozida, a carne de porcos, carneiros e galinhas era preparada em casa, desde a morte do bicho. Na cozinha de fora também se preparavam as laranjas, cidras, figos, goiabas e outras frutas para virarem doces nos tachos de cobre, limpavam-se as raízes e outros vegetais; sem falar no sabão, que até entrado o século XX era feito também em casa, de gordura ou de cinza. Tudo isso era trabalho pra mais de uma mulher.
Inúmeras vezes vi frangos do galinheiro serem preparados pela minha avó, Aurora Barghini (a Lóla). Ela mergulhava o bicho na água fervente, bem de leve, para não cozinhar a carne; assim as penas ficavam soltas e a gente as puxava, depenando a ave; pra limpar alguma penugem que ficava, era só tacar fogo sobre álcool numa bacia de alumínio (como eram úteis as grandes bacias de alumínio!) e, segurando o frango pela cabeça e pelos pés, chamuscar o bicho nessa chama. Na casa da minha avó, a cozinha que conheci tinha sido construída nos meados do século XX. Depois da sala do fundo, fez-se um banheiro e uma cozinha, os dois bem amplos e azulejados de branco. Fizeram ainda uma abertura no meio da casa, um “jardim de inverno” que permitiu abrir janelas em duas alcovas. Foi nessa reforma que a casa do século anterior foi adaptada para novos jeitos de morar, agora sem lenha e com água que chegava pelas torneiras.
No século XIX, além de as cidades não terem água encanada e rede de esgoto e de não existirem os fogões a gás, o mercado de consumo era incipiente, o que quer dizer que as famílias produziam quase tudo que consumiam. Muito pouco era comprado fora de casa. Para o fornecimento de algumas coisas (lenha e água deviam chegar à casa quase diariamente) e para que o lixo e os dejetos pudessem ser levados embora, havia sempre nos fundos uma entrada larga para a carroça. A fachada que a gente vê na Praça da Matriz não mostra a profundidade do terreno, não faz a gente imaginar que depois da parte edificada existe um quintal bem comprido atravessado pelo antigo caminho da carroça.
No tempo em que quitandas e mercados não tinham a variedade e a quantidade de comestíveis de hoje, era preciso ter em casa uma horta com verduras e ervas, e manter as árvores que só numa época esperada do ano davam seus frutos. Pouco antes de morrer, meu avô plantou um tanto de jabuticabeiras que até hoje estão produzindo. No seu quintal havia dezenas de árvores frutíferas (jabuticabeiras e mangueiras principalmente, mas dali também comi maçã, uva, limão, laranja lima, abacate e uvaia). Mesmo assim, claro, desde os meados do século XX ele ia semanalmente ao mercado (onde hoje é o Centro Cultural, atrás do Clube XV) comprar legumes e verduras trazidos pelos sitiantes, que os vendiam sobre tabuleiros de madeira ou mesmo no chão.
Mais distante das árvores altas e mais perto da casa, minha avó mantinha um jardim que ela regava todos os finais de tarde, debruçada do terraço do piso térreo. Ali as plantas e os formatos dos canteiros ainda contam do tempo em que nasceram: um tempo em que se valorizavam os canteiros simétricos e arrumadinhos entre caminhos de cimento, um jardim limpo, que mostrava a natureza controlada e as flores do gosto dos meados do século XX: o jasmim bogari, os agapantos e antúrios, as camélias, as palmas, as rosas e a boca-de-leão.
Além do caminho da carroça, da horta e das árvores frutíferas, os quintais nascidos no século XIX tinham os tanques de lavar roupa, o lugar para quarar a roupa (onde a roupa ficava sob o sol, para clarear), o galinheiro, o chiqueiro, um pedacinho de chão para deixar o animal de montaria por um período. Na zona urbana, as pessoas mantinham pastinhos nos subúrbios, onde toda manhã buscavam o cavalo e a vaca para ordenhar o leite.
Com o tempo, a cidade foi se diferenciando do sítio, a legislação foi restringindo a criação de animais no núcleo urbano; foi ficando difícil ou mesmo proibido criar porcos e galinhas no quintal. Quanto mais a cidade se diferenciava da zona rural, mais surgiam ofertas de produtos e serviços. Com o tempo, o açougue passa a vender a carne, o leiteiro deixa o leite na porta das casas, e as frutas, verduras e legumes a gente compra nas quitandas, onde não existem as mangas bourbon do meu avô.
Como fomos nos desobrigando de providenciar muitas coisas necessárias pro dia-a-dia, fomos esquecendo dos quintais. Quando passamos na rua e vemos um monte de fachadas antigas, tendemos a pensar: “que lindo! Aqui nesta parte da cidade se preservaram as casas antigas, aqui se pode ver o passado”. Na verdade, as fachadas das casas antigas só servem pra compor um cenário agradável e oco, sem conteúdo; no máximo, permitem lembrar dos donos das casas, em geral das casas maiores. Isso não é em si um mal, mas é bem pouco. Se quisermos saber como viviam as gentes que moravam e trabalhavam nessas casas, temos que andar pelos quintais, ficar debaixo das mangueiras e abacateiros, observar os vestígios de cada equipamento ali camuflado e buscar pelo nome das pessoas que trabalharam para viabilizar aqueles jeitos de morar.
Lucília S. Siqueira
São Paulo, Julho de 2021. Historiadora e professora da área de patrimônio cultural na Universidade Federal de São Paulo. Entre suas publicações está o livro Bens e costumes na Mantiqueira: o município de Socorro no prelúdio da cafeicultura paulista (1840-1895).