A matéria de hoje é peculiar e não seguirá os moldes comuns das entrevistas, vai ganhar um tom mesclado entre o criativo e
o registro histórico, por conta da personagem que não consegui efetivamente entrevistar. Diversas vezes quando tive minha
curiosidade aguçada para saber algo sobre a história de Socorro, sentei-me para prosear com Fernando Helbert de Lima, seu
Ibete, que me narrou com detalhes costumes e tradições de seu tempo de menino quando para estudar era muitas vezes
necessário pegar o trem que passava pela estação do Visconde de Soutello rumo ao Liceu em Amparo/ETEC João Belarmino.
Hoje suas duas oficinas – a de bicicletas e a de chaves – e ele mesmo são o foco da matéria.
Entretanto, entrevistá-lo não me foi possível, pois o trabalho o ocupa das 7 às 18, sem trégua. Nascido em 10 de agosto de
1931, Ibete desde cedo foi movido pela curiosidade e vontade de aprender. O amor pelas bicicletas e a curiosidade por seu
funcionamento, por consertá-las ou aprimorá-las surgiu aos 9 anos quando seu pai, Julio Domingues de Lima, montou uma
loja pioneira na qual era possível não apenas comprar, mas alugar bicicletas para aprender a andar e fazer passeios. Hoje pedalar é algo cada vez mais comum em Socorro e as pessoas investem em suas bikes para seguir por trilhas pela Serra.
Na década de 30, entretanto, possuir uma era um privilégio e era preciso cuidar também da manutenção, sendo
por isso criada uma oficina. O pequeno Fernando, já alfabetizado pelo mestre Agostinho, dividia seu tempo entre as aulas
do Grupo Escolar Coronel Olímpio Gonçalves dos Reis, a oficina da loja do pai e o auxílio à mãe, Rosa Carvalho de Lima, na
entrega de roupas por ela costuradas.
Curioso, Ibete logo tomou gosto por entender o funcionamento das bicicletas, a montar e desmontar… o que com certeza
aguçou sua curiosidade e ajudou a desenvolver o gosto por resolver os mais diversos problemas de seus clientes, envolvendo peças que precisavam ser soldadas, lixadas, o que quer que fosse.
O menino cresceu e logo deixou o Liceu de Amparo para se tornar sócio dos irmãos Sérgio e Edgar em uma fábrica de cadeiras
artesanais, o que não durou muito tempo, pois a fábrica não era rentável. Dali passou a trabalhar na antiga fábrica de
facas de Rachid José Maluf, um trabalho ainda no estilo artesanal e esquecido como tantas coisas na história de Socorro. E foi com esse trabalho que economizou para junto com seu irmão Sérgio abrir a oficina de bicicletas na Marechal Deodoro, retomando sua paixão da infância. Por um longo tempo, durante a semana cuidava das bicicletas que apareciam
pela oficina e aos finais de semana se reunia com os amigos Laercio Alonso, Antonio Rasoppi, Irineu Sartori e Cid Rozante
para percorrer as cidades vizinhas de bicicleta, chegando a visitar todas as que fazem fronteira com Socorro e ir mais além
chegando até Pedreira.
Em 1951, aos 21 anos, Hermínia Benatti casou-se com ele e foi sua inseparável companheira enquanto esteve presente nesse nosso mundo terreno. Eles tiveram os filhos Fernando Helbert, Thais, Hermínio e Jaime. Jaime, o caçula, é seu atual
companheiro de oficinas.
Sempre criativo e trabalhador, participou de várias “empreitadas” empresariais como a criação de uma fábrica de copinhos
para sorvetes, uma funerária, a criação de uma filial de sua própria loja de bicicletas, o antigo Bar e Sorveteria São Paulo e o
histórico e famoso Bar Seleta no qual tantos socorrenses viveram histórias. Mas, sua verdadeira paixão sempre foram as bicicletas e o trabalho na oficina. Ali, entre elas, surgiu o seu segundo ofício, que o tornou muito requisitado por anos, o de chaveiro.
90 anos de entusiasmo diário “Não havia chaveiros na cidade, então como as pessoas sabiam que eu tinha solda e equipamentos para lidar com metais na oficina traziam pedaços de chaves ou chaves com problemas para que eu consertasse. ”Era um desafio, pois trabalhar com chaves exige muita precisão. Um pequeno deslize pode fazer com que a chave emperre ou não entre na fechadura. Mas Ibete compreendeu a importância de ajudar as pessoas e investiu nos equipamentos necessários
para a modelagem das chaves, tornando-se o primeiro chaveiro da cidade. Trabalha com entusiasmo, atendendo a diversas pessoas que ficam impedidas de entrar em suas casas devido a algum problema com chaves: perda, quebra da chave, desnivelamento de portão ou porta, entre outros. Chega sempre bem humorado, com sua maleta mágica e não desiste enquanto não resolver o problema do cliente. A pandemia quebrou essa sua rotina, mas ele continua acordando cedo e a trabalhar nas duas oficinas das 7 às 18 horas, sempre atento aos detalhes e aproveitando peças que guarda. Observador
e criativo, nada desperdiça, a tudo reaproveita e dá novo destino.
Como nos disse seu filho Jaime “o trabalho de um chaveiro tem se tornado uma raridade, porque é meticuloso e ainda artesanal.” Ele tem razão, as pessoas querem cada vez mais o instantâneo, o rápido. Assim, nas duas oficinas, pai e filho, continuam a prestar serviços importantes e pouco comuns, cuidando de cada cliente – e de suas bicicletas e chaves – com especial atenção.