Os desafios da presença feminina no universo masculino do voo livre

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O termo “sexo frágil” não combina com as mulheres há muito tempo. Corajosas, muitas delas vêm se aventurando na prática de esportes que antes eram designados apenas aos homens: asa delta, skie skate, paraquedas, surf, entre outros.
O chamado “esporte radical” é somente para mulheres com muita ousadia e determinação, como a produtora rural e coach de idiomas Giceli Guimarães Fleming, 53 anos, que encontrou na prática do voo livre (parapente) uma mistura de medo, adrenalina e felicidade. Há 6 meses treinando controle de vela, decolagens e pequenos pousos em morrotes para fazer seu primeiro voo solo, Giceli conta sobre sua paixão e os desafios da presença feminina no voo livre.

JM- Como surgiu o interesse na prática do voo livre?
GGF- Minha paixão não é recente, mas começou na década de 80, quando Socorro foi o palco para a formação da EGVL (Equipe “Gato” de Voo Livre) e cenário para vários campeonatos de voo livre, na época somente para prática da asa delta.
Lembro-me que, a primeira vez que vimos uma asa delta foi no campeonato de VL no Morro Pelado em Águas de Lindóia onde parecia ser o evento mais incrível e diferenciado da época. Enquanto 99,9% das pessoas falavam de futebol, nós falávamos de vento caudal, massas ascendentes ou descendentes, cross country, vôo prego etc. Na época, eram equipamentos importados, com alto custo e o esporte tinha o estigma de ser perigoso. Eu participava dos campeonatos e das práticas de voo local como resgate, e quando era Cross Country (voo de distância) já era também uma aventura, pois nunca sabíamos em que cidade ou direção os pilotos pousariam. Não tínhamos GPS, ou celulares, ou localizadores em tempo real. Usávamos apenas rádio de comunicação. Aquele ambiente já tinha todo um clima de aventura e ao mesmo tempo era um laboratório empírico de aprendizado da física, da aerologia, da interpretação das condições atmosféricas etc.

JM- Qual foi a sensação quando fez o seu primeiro vôo?
GGF- Meu primeiro voo foi realizado em Atibaia num voo duplo de asa delta com o piloto Ale Gerage, em 1986 durante a 3ª etapa do Campeonato Brasileiro de VL. Foi mágico conhecer a sensação de liberdade, como um pássaro. Foi realizar o “sonho de Icaro” com a minha “criança interior”. Uma mistura de medo, adrenalina e felicidade que me fez reportar ao voo de Fernão Capelo Gaivota, do livro de Richard Bach.

JM- Porque somente agora você decidiu tornar-se piloto de parapente? Quais foram os desafios ?
GGF- Eu adoraria ter sido piloto de asa delta na minha juventude, mas os desafios eram muitos. Eu era ainda muito jovem, não havia muitas mulheres voadoras naquela época. Era 100% um “universo masculino”, um esporte de alto investimento, de estigma forte como “esporte de risco”, sem muita difusão do conhecimento técnico, sem referência bibliográfica brasileira para estudo. Além disso, a vida toma diferentes rumos em função do que nos é rotineiro, importante e prioridade. Então, aquele momento mágico de “voar” ficou latente, dentro de mim, durante os longos anos que se passaram e, foram anos que me levaram e me trouxeram de Socorro e do Brasil. Foram contextos muito diferenciados “íntimos e pessoais” no qual eu não tinha maturidade psicológica, social, financeira para me dedicar a uma prática esportiva como VL. E ai, cabe muito bem a frase: “tudo tem seu tempo certo”. Eu percebo que eu tive um “ganho significativo” em esperar o “tempo certo”, pois hoje temos estudos sobre o esporte, tecnologia e equipamentos modernos. Houve uma evolução na prática do VL que hoje congrega também o parapente, que é mais prático em termos de logística e resgate dos pilotos, tornando-se muito mais difundido e apreciado pelos esportistas. Quanto a mim, foi o tempo de amadurecer para chegar a “pilotagem segura”

JM- Você disse que eram poucas mulheres que voavam. E hoje as mulheres estão mais participativas na prática do parapente?
GGF- Sim, as mulheres estão um pouco mais participativas e estão mostrando resultados significativos nos campeonatos, inclusive a nível mundial. Mas é ainda um universo masculino onde a participação feminina não passa de 1% ou até menor. Orgulhosamente eu tenho colegas mulheres de vôo, em Atibaia, Andradas e não podemos esquecer que temos uma Seleção Brasileira de Voo Livre, onde uma das integrantes é mulher. Marcela Uschoa voa desde 2010, possui três recordes mundiais: de voo em distância em linha reta, voo por três pontos e voo declarado, – Campeã Brasileira de Parapente em 2018,- 3º lugar feminino no Paragliding World Cup Andradas 2017, Campeã Mineira e Paulista de Parapente. Além disso, outras mulheres me inspiram como as campeãs mundiais Meryl Delferriere (FRA), Soyoung Cho (KOR), Christina Kolb (AUT)

JM- Você já sentiu algum desconforto ou discriminação por ser mulher praticando um esporte que é majoritariamente “masculino”?
GGF- Nas muitas vezes que entrei e sai deste “universo masculino”, eu nunca senti qualquer desrespeito ou discriminação por ser mulher envolvida com VL, seja como resgate, como colaboradora, como aprendiz e futura “preá” (piloto novato). Ao contrário, vejo muitos homens e até mulheres que admiram e me julgam “corajosa” ou “ousada”. Meus “colegas de rampa” e de “treino” são ótimos em me encorajar e estimular aos treinos e sempre dizem: “ainda vamos voar juntos“. Minhas filhas, que moram no Canadá, e são “esportistas radicais” (praticam snowboard, kite skating board) me apoiam firmemente, pois sabem que a minha “criança interior” está feliz e resgatando algo mágico da adolescência. Então, já tive sim, pessoas me criticando e questionando se meu perfil, enquanto “mulher” seria adequado para pilotar um parapente. Mas tenho muito mais pessoas me estimulando, me auxiliando que pessoas me criticando. Claro que, estando num ambiente majoritariamente masculino não dá pra pensar se o cabelo vai embaraçar, se a unha pode quebrar. Mas nem por isso preciso perder a feminilidade por estar neste “universo masculino”. Estando na rampa, no pouso, nos treinos somos como uma “família do voo”, uma tribo que fala a mesma língua.

JM- Hoje, qual é o maior desafio para uma mulher praticar o VL?
GGF- Eu, pessoalmente acho que, o maior desafio para elas seja o desafio subjetivo (interno), e que está presente não somente em mulheres mas também em muitos homens devido a falta de informação e conhecimento do esporte. Ou seja, o desafio principal é “querer”, querer vencer o medo interno, querer ser determinado, fazer um curso homologado, realizar treinos constantes, ler sobre o assunto. Então, voar sendo “piloto” exige um “processo” de aprendizado, assim como aprender a dirigir um carro. É diferente do “evento” de fazer um voo duplo com um instrutor.

JM- Qual seu próximo passo?
GGF- Estou treinando para fazer meu vôo solo em breve. Eu não tenho pressa. Talvez no mês de abril eu já esteja apta a realiza-lo na Ilha do Mel (Paraná), senão eu realizarei meu solo no Pico do Gavião, em Andradas. Depois de uns 10 vôos solos ou mais, a meta maior será a realização do treinamento SIV de Pilotagem Segura, com o ícone do voo livre, Kurt W. Steoterau.

JM- Algo mais?
GGF- Eu convido não somente as mulheres, mas a todos a se permitir vivenciar a experiência de um voo duplo para perceber “pessoalmente” qual é a mágica sensação do vôo livre. Usando as palavras de Kurt W. Stoeterau, autor do livro Voando com Ciência…Voando com Consciência: “Voo Livre é uma experiência mágica que coloca em xeque mate questionamentos essenciais, ao nível da alma que, a partir do “voo externo”, quer abrir um portal para experimentar o “voo livre interno,” o mesmo voo de “Fernão Capelo Gaivota” da obra de Richard Bach”.

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