“A saúde mental nunca esteve tão em pauta quanto em tempos de isolamento social”. As palavras ditas pelo psiquiatra dr. Arthur Guerra, professor da Faculdade de Medicina da USP se refletem no aumento da procura por atendimento psicológico, como observa a psicóloga Bianca Nascimento Moraes. “Os cuidados com a saúde mental são fundamentais. As doenças emocionais podem incapacitar tanto, ou mais, do que doenças de ordem física. Por exemplo, tenho pacientes que necessitam de hemodiálise para manutenção da vida, os quais continuam com uma vida produtiva e ativa, mesmo com as limitações da doença crônica. E tenho pacientes com transtorno psicopatológico, que apesar da integridade física, sentem-se incapazes, não conseguem sair de casa, seja por medo, desânimo, falta de energia, tristeza ou qualquer outro sintoma de ordem psicoemocional”; diz ela, que é doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da USP e que atua como encarregada da Divisão de Psicologia do ICHC-FMUSP, em entrevista ao Jornal O Município que encerra o mês destinado à conscientização do cuidado com a saúde mental, o chamado Janeiro Branco.
OM – O aumento no número de casos da COVID-19 tem feito o Governo retroceder às etapas de medidas de isolamento social. Na sua opinião, as pessoas estão preparadas para um novo isolamento?
Acredito que apesar de cansadas, as pessoas estão mais preparadas, pois já tiveram que se organizar e desenvolver estratégias para lidar com o isolamento na primeira onda.
OM – O desrespeito às recomendações é reflexo do tão falado “cansaço” de ficar em casa?
Não necessariamente. Algumas pessoas nunca fizeram o isolamento. Mas a resposta desta pergunta é complexa; pois, os motivos são os mais variados. Acredito que o principal é a falta de recursos emocionais para administrar o isolamento.
No entanto, também podemos identificar pessoas sem capacidade cognitiva para entender o problema e os que têm traços antissociais, ou seja, têm dificuldade de conviver com regras e normas sociais.
OM – O que caracteriza a “falta de recursos emocionais”?
Quando uma situação exige mais equilíbrio emocional do que temos, precisamos lançar mão de mecanismos de defesa para não enlouquecer. Segundo Kübler-Ross, uma psiquiatra suíça, que em 1969 publicou o famoso livro “On Death and Dying’’ (Sobre a Morte e o Morrer), diante de situações limite ou inesperadas como a pandemia, reagimos negando, nos revoltando, barganhando, deprimindo ou aceitando.
Uma mesma pessoa pode alternar entre estes estados emocionais dependendo da forma como interpreta suas vivências. Na prática seria algo mais ou menos assim: “Se eu parar de trabalhar, meu negócio pode falir e isso é inadmissível para mim”. Então, começo a funcionar no modo “negação”, ignorando o risco de morte com a COVID-19 e agindo como se nada estivesse acontecendo. Quero ressaltar que este fenômeno é um mecanismo de defesa inconsciente, diferente do negacionismo e das fake news que são conscientemente usadas para manobrar a massa. Confira outros exemplos abaixo.
Outros exemplos seriam:
Paciente, empresária de 70 anos, num estado de revolta e raiva, disse: “Eu vou sair porque este vírus vai me matar de qualquer jeito, se eu não morrer da doença, vou morrer de desespero dentro de casa”.
Paciente solteiro, empresário de 71 anos, pai de um filho adulto, num estado de barganha, verbalizou antes de ser intubado: “Se Deus me der a chance de sobreviver, vou melhorar a forma de me relacionar com meu filho”.
Paciente casada, professora de 44 anos, num estado deprimido, falou: “O vírus está por todo canto, não tem para onde correr, não tenho vontade de sair da cama nem para as nossas consultas, na verdade ficar ou não de quarentena, tanto faz pra mim”.
Paciente solteira, psicóloga de 35 anos, num estado de aceitação, conclui: “No início foi desesperador, mas num segundo momento descobri que a quarentena também tem um lado positivo, estou fazendo cursos online, me arriscando na cozinha, tendo mais tempo para mim sozinha em casa”.
OM – Como profissional, com que situação você mais se deparou que estava fora da sua rotina, desde o início da pandemia?
Sem dúvida, o contato virtual com os familiares dos pacientes internados. Por mais que tenhamos técnicas de comunicação de más notícias, é desafiador para equipe de saúde comunicar um óbito e fazer o acolhimento por telefone ou vídeo chamada.
Desde o início da pandemia, sempre que possível, intermediamos o contato entre paciente e familiares, inclusive nos instantes que antecedem a intubação. É um momento que exige muito, emocionalmente; há chance de ser a despedida entre eles, o último contato consciente entre marido e mulher, pais e filhos, irmãos e amigos. Os diálogos entrecortados pela falta de ar são extremamente emocionantes. É impressionante como o ser humano é tomado por uma lucidez sobre o que é mais importante na vida nos momentos que antecedem a morte ou a possibilidade de morte. A geriatra Dra Ana Claudia Quintana Arantes, autora dos livros “A Morte é um dia que vale a pena viver” (2017) e “Histórias Lindas de Morrer” (2020), escreve sobre isso.
OM – Como o isolamento social afeta a saúde mental de uma pessoa?
O homem é um ser biopsicossocioespiritual, ninguém é uma ilha, a vida social é componente importante para uma vida saudável e com qualidade. Apesar da interação virtual minimizar as dores do isolamento, nós somos apegados à forma de contato físico, ainda mais numa cidade pequena como Socorro em que as distâncias são pequenas e o acesso ao outro é fácil.
OM – A idade é um fator determinante de como cada pessoa reagirá ao isolamento?
O impacto do isolamento é proporcional à intensidade da vida social. Em geral, os jovens sentem-se mais sufocados com a privação de contato social porque vivem aglomerados, têm maior necessidade de sair de casa para encontrar os amigos e ter vida sexual. Vale lembrar que esse comportamento com frequência vem acompanhado do uso de substâncias psicoativas como álcool ou outras drogas, o que certamente aumenta o risco de contaminação pelo novo Coronavírus.
OM – Quais são os problemas mais frequentes?
Na minha opinião, o risco de se contaminar, levar a doença para quem ficou em casa de quarentena e lidar com o peso de ser responsável por isso, principalmente se levar para um ente querido que tem maior probabilidade de desenvolver o tipo grave da COVID 19. Penso que é fácil imaginar os problemas de ordem psicológica que podem ser desencadeados por uma situação dessa.
OM – Além de casos de ansiedade e depressão, outras situações que têm surgido no cenário pandêmico são a falta de renda, divórcios, compulsão por compras online, aumento do uso de álcool e da violência doméstica, dor do luto… Tudo isso pode desencadear problemas de saúde mental?
Sim, na verdade, compulsões, dependência química, agressividade e luto exacerbados já são considerados psicopatologias, existe CID para cada um deles. Costumo dizer aos meus pacientes: Se está te causando sofrimento é importante olharmos com atenção para isso, a falta de atenção com a saúde mental acarreta prejuízos emocionais, físicos, relacionais, e muitas vezes financeiros, que poderiam ser evitados se o tratamento psicológico fosse precoce. Como já disse acima, as doenças psicoemocionais podem ser até mais incapacitantes do que as orgânicas, o que pode agravar ainda mais as dificuldades financeiras desse momento.
OM – Você acredita que a chegada da vacina será uma aliada na questão da saúde mental?
Uma aliada para a saúde mental, física, financeira etc. Não creio que 2021 será completamente diferente de 2020, para isso a vacina precisa chegar a todos. Faço um apelo para as pessoas que ainda se sentem inseguras quanto tomar a vacina: busquem informações em fontes confiáveis, assim vão se deparar com a seriedade dos pesquisadores e com evidências dos benefícios da vacina.
OM – Quais as dicas para manter a saúde mental neste cenário em que estamos vivendo?
Somos seres biopsicosocioespiritual, isso quer dizer que nosso corpo físico, nossa mente, nossas relações interpessoais e com Deus (com o que transcende) precisam ser cuidadas de forma concomitante para gerar equilíbrio, saúde mental. Então, a principal dica é se organizar para cuidar das quatro áreas da vida simultaneamente!
É preciso dividir o tempo de forma que haja espaço para: atividade física; cuidado com a alimentação saudável; respeito às horas de sono; interação com os outros sem aglomerações ou de maneira virtual; e principalmente ter aqueles momentos diários para conversar consigo mesmo e meditar. Se mesmo sabendo da importância destes hábitos, existe a dificuldade ou resistência para se autocuidar, sugiro procurar orientação de um profissional com formação na área da saúde mental para ajudar a identificar o que pode estar por trás desta autossabotagem.
OM – Algo mais?
Agradecer a oportunidade de encerrar o mês falando sobre Saúde Mental neste importante veículo de informação da nossa cidade.